domingo, 2 de março de 2008

Detalhes de ética política

O que conta cada vez mais não é a substância, mas a forma, não é a consistência mas a estatística

1. Nos interstícios dos factos políticos, às vezes sugeridos ou alimentados pela "arte"do Governo, outros assuntos de importância para as pessoas passam ao lado ou são apenas perceptíveis em "detalhes". Seleccionei três que revelam que o que conta cada vez mais não é a substância, mas a forma, não é a consistência, mas a estatística, não é a verdade técnica, mas a mentira política.2. O primeiro tem a ver com a nova incidência do IVA sobre a contribuição para o audiovisual a pagar na factura da electricidade. Ao tentar justificar esta medida, o ministro Santos Silva disse candidamente que tal "resulta da lei"... Lei que estabelece que estão sujeitas a IVA as transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas a título oneroso. Alguém, com boa-fé, acha que a contribuição obrigatória para o audiovisual (taxa obrigatória na factura de electricidade, independentemente de o seu titular possuir aparelho de rádio ou de televisão) é "uma transmissão de um bem ou uma prestação de serviço"? Trata-se de uma nova e insólita carga tributária, ao arrepio de todas as normas de bom senso e razoabilidade fiscais. Dir-se-á que o que está em causa não merece muita atenção, pois apenas se trata de lançar o IVA a 5% sobre a referida taxa, o que, embora no total vá render ao Estado mais de seis milhões de euros, implica apenas mais 9 cêntimos por mês para os consumidores de energia. Uma insignificância para o Governo que, ao mesmo tempo, considera 68 cêntimos de acréscimo das pensões um significante aumento. Mas a questão é de princípio. É um espelho de como o Estado trata os contribuintes. Numa qualquer alínea perdida num mar de remissões da lei orçamental, à socapa, o Governo lança mão de uma nova e original forma de onerar as pessoas: lança um imposto sobre uma taxa. Original, sem dúvida, ilegítimo, por certo. O Tribunal Constitucional concorda? E o que pensa o provedor de Justiça?
3. Noutro âmbito, o Governo pôs de lado o regime complementar de pensões que resultaria de um tecto contributivo e, em aparente compensação, anunciou os certificados de reforma, uma espécie de PPR do Estado. Está no seu direito. Agora não pode é passar para a opinião pública a ilusão de que se trata de um alternativo e ousado regime complementar. Os trabalhadores continuarão a descontar para a Segurança Social sobre a totalidade do seu salário e o Governo concede-lhes "magnanimamente" a possibilidade suplementar (e não complementar) de aplicarem mais 2% a 6% do salário num PPR do Estado. Passando o Estado a operar no mercado, seria expectável haver regras de sã concorrência com os produtos similares de aforro. Quem fizer no Estado um segundo PPR, tem um desconto no IRS, mas se esse segundo produto for feito no mercado já não o tem. Aliás, este incentivo vai beneficiar, mais uma vez, quem tem forte capacidade de poupança. Não se imagina um trabalhador com um salário mediano a aumentar o seu desconto para além dos 11% que hoje já a Segurança Social lhe leva. E como os benefícios fiscais não são gratuitos, a restrita minoria que deles vier a beneficiar será financiada pela esmagadora maioria dos que não o podem fazer.E qual a entidade que vai supervisionar estes "novos PPR", ou será que o Estado, para si, dispensa tal prática prudencial? E vão sujeitar-se às mesmas exigências dos outros PPR e Fundos de Pensões, no que se refere a margens prudenciais de solvência, de garantia e de limites materiais de composição da carteira dos activos financeiros que suportam aqueles produtos? Ou serão esses activos meras "sucursais" da dívida pública? E quem vai suportar na totalidade as cargas de gestão, venda e resgate: os subscritores ou os contribuintes da Segurança Social? E como pode o Governo anunciar, com ligeireza, risco zero (induzindo erradamente as pessoas), quando vai ter que investir em activos de mercado? Não é o executivo que acaba de adoptar uma cínica via de morte lenta e de alteração de legítimas expectativas dos detentores de certificados de aforro, o mesmo que se diz às pessoas para adquirirem certificados de reforma... "sem risco"?
4. Mais um auto-elogio do Governo a propósito da diminuição da taxa de pobreza de 20% para 18%. O primeiro-ministro e o MSST apressaram-se a dizer quanto esta diminuição era fruto das medidas sociais do executivo, como a elevação do salário mínimo e "algumas medidas de natureza fiscal do executivo" (sic!!!). José Sócrates entusiasmou-se mesmo com o "efeito fundamental" (sic) do complemento solidário para idosos, criado em 2006, para 300.000 pessoas, mas que só abrange restritivamente 60.000. Aquela melhoria revelada pelo inquérito do INE realizado em 2006 teve por base, como sempre, o rendimento das famílias inquiridas no ano anterior. Ou seja: na verdade, a taxa de pobreza desceu de 20%, em 2003, para 18%, em 2005... e não em 2006, como Sócrates proclamou! 5. Eis três exemplos de como hoje se governa. Com malabarismos, usando e abusando da natural ignorância das pessoas em certas matérias, aproveitando a impreparação de parte significativa da comunicação social. Sobranceiramente, acham que vale tudo.
Bagão Félix - Público

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